sábado, 14 de janeiro de 2023

A locomotiva de dez rodas conjugadas da E.F.D. Pedro II

 Por Jonas Augusto M. de Carvalho

A "Decapod" em fotografia de fábrica. Foto: Baldwin Locomotive Works

Com a expansão da Estrada de Ferro D. Pedro II e consequente aumento do tráfego, uma restrição antiga tornou-se mais evidente: o transito na “2ª seção”, trecho compreendido entre Belém (Japeri) e Barra do Pirai.

Construído no início da década de 1860, esse trecho de aproximadamente 46km de extensão representou um enorme desafio de engenharia e técnica para sua realização pois era necessário vencer a Serra do Mar. Entre as estações de Belém e de Barra do Pirai o desnível era de 327m e para superá-lo bem como o relevo local a ferrovia teve que seguir um traçado sinuoso, com muitos aterros de grande volume, muitos exigindo a construção de muros de arrimo com alvenaria de pedra seca, diversos cortes, pontes e bueiros, além de 16 túneis (sendo o maior o Túnel Grande, com cerca 2.200m de extensão). Manteve-se ao longo desse trecho o raio mínimo de 225 metros e a rampa máxima de 1,8% a fim de se viabilizar a operação da melhor maneira possível.

A construção desse trecho motivou a compra de três locomotivas Baldwin “Flexible Beam”, rodagem 0-8-0T em 1863 para o transporte de material pelas linhas provisórias construídas para dar suporte às obras da linha definitiva. As locomotivas precisavam ser leves e, ao mesmo tempo, ter potência e aderência suficientes, bem como serem capazes de se inscrever em curvas com raio mínimo de 70 m (uma vez que era uma linha provisória). Esse fato é aqui exposto para reforçar o tamanho desafio que foi a construção desse trecho, bem como o que as demais locomotivas iriam enfrentar no dia-a-dia.

No início da década de 1880 o trecho já representava um “gargalo”, onde as composições tinham que ser fracionadas (divididas) para que as locomotivas então existentes conseguissem galgar a serra. As maiores e mais possantes locomotivas disponíveis nessa época eram as seis 2-8-0 fabricadas pela Baldwin em 1877, com cilindros de 20”x24” e cerca de 100.000 lbs (45.359 kg) de peso total.

Para solucionar esse problema, em 1884 foi encomendada uma locomotiva que fosse capaz de trabalhar em rampas de 1,8 por cento, curvas de raio de 180 a 200 metros, com capacidade para tracionar os trens a uma velocidade de 20 quilômetros por hora. A Baldwin respondeu com uma locomotiva com rodagem 2-10-0, a primeira do tipo a ser fabricada; devido às 10 rodas motrizes, o tipo recebeu o nome de Decapod. Essa foi a maior e mais pesada locomotiva construída pelo fabricante até então.

Modelo 3D construído para o simulador Train Sim desenvolvido pela Machine Rail - www.machine-rail.com

A locomotiva foi concluída em março de 1885, recebendo o número de ordem de fabricação 7557 e o número 119 da estrada de ferro. Conforme os critérios da Baldwin, ela foi classificada como 12-38 F 1, sendo 12 o número total de rodas (2 guias+10 motrizes+0 de arrasto) e 38 um fator calculado em relação ao diâmetro dos cilindros; a letra F indica 10 rodas acopladas e o número 1 no final indica que essa foi a primeira locomotiva dessa classe produzida pelo fabricante. Vale ressaltar que essa não foi a primeira locomotiva 2-10-0 fabricada pela Baldwin. A primeira (na verdade foram duas) foi uma encomenda da Compania Constructora Nacional Mexicana para a bitola de 3 pés (914,4mm), sendo fabricadas em junho de 1881, números de série 5697 e 5698. A da Dom Pedro II foi a primeira a recebr a denominação de “Decapod”.

Essa locomotiva foi bastante celebrada quando de sua construção, sendo naquele momento a maior, mais possante e mais pesada locomotiva já fabricada pela Baldwin; representava o mesmo para o Brasil, sendo a maior locomotiva a circular em território nacional. Sua chegada é notícia em várias publicações da época, além dos relatórios da então E.F.D. Pedro II.

O valor pago por ela na época foi de 36:003$256 e, para o seu desembarque no Rio de Janeiro, foi necessário alugar a cábrea (espécie de guindaste para suspender e deslocar grandes pesos) do Arsenal da Marinha por 920$000 (novecentos e vinte mil-réis).

Se ela foi celebrada em sua chegada, o mesmo não se pode dizer em relação à sua carreira, que passou praticamente desapercebida. Notícias referentes a ela pós chegada são muito raras, mesmo nos relatórios da D. Pedro II e depois na EFCB. No relatório de 1885 lê-se:

“Esta locomotiva que pouco tem ainda trabalhado por ter sido recebida no fim da safra, e quando o movimento da serra já havia decrescido bastante, tem sido entretanto bem experimentada e até fins de Março completava um percurso de cerca de 2.500 kilometros, com os trens conduzidos em Dezembro de 1885 e no primeiro trimestre do anno corrente (1886), tendo-se verificado a grande facilidade com que esta locomotiva se inscreve em todas as curvas da serra e a carga calculada que póde ser definitivamente adoptada no serviço do trafego.”

Em 1886, têm-se a notícia de que o Imperador, Dom Pedro II, a batizou como “S. Francisco”.

No relatório de 1887, referente ao ano anterior, aparece a informação de que com a maior utilização de locomotivas Consolidation, pode-se recolher para reparação rápida a locomotiva nº 119 Decapod. No relatório seguinte, novamente a Decapod aparece como tendo parado para reparo.

Em 1892 surge uma notícia no jornal Gazeta de Notícias assinada sob pseudônimo de Dr. Kerozene dizendo que a locomotiva n. 119 estava fora de serviço por “falta de competência” do então chefe da locomoção, o Dr. Faria.

Já em 1895, outra notícia, publicada pelo Jornal do Commercio, com nota redigida pelo Dr. Francisco Pereira Passos onde ele atesta que, em conversa com o Dr. Carlos de Niemeyer, o mesmo lhe disse que a Decapod havia trabalhado apenas entre 1885 e 1889 com apenas três interrupções para reparações e, depois, foi retirada de serviço, tendo, a partir de então, ficado encostada; o que, na visão de Pereira Passos, atestava que a locomotiva “não deu resultado favorável”.

De fato, nos relatórios da EFCB de 1889 a 1906 a Decapod só aparece nos quadros de locomotivas para ser contabilizada, não havendo maiores menções aos seus serviços e reparações. O único fato que merece nota é que em 1906 ela deixou de ser classificada como “locomotiva de carga” para ser classificada como “locomotiva especial”.

Entretanto, curiosa notícia aparece no Jornal do Brasil, de 14 de maio de 1899, onde uma nota diz: “Essa locomotiva (Decapod) foi reformada nas officinas do Engenho de Dentro.” O que indica que a mesma estava sendo utilizada pela EFCB, apesar de não haverem menções mais específicas nos relatórios da estrada.

Sem menções específicas no relatório da EFCB de 1907, onde registrou-se apenas a baixa de 5 locomotivas, a “Decapod” foi baixada, fato confirmado pelo livro Memória Histórica da Estrada de Ferro Central do Brazil, onde há a especificação dessas 5 locomotivas baixadas no decorrer do ano de 1907. Sua baixa coincide com uma grande renumeração de locomotivas feita pela EFCB, onde a sua matrícula “119” foi utilizada então em uma 4-4-0 Baldwin de 1892.

Diante de todos os registros hora disponíveis (ou a falta deles), conclui-se que a locomotiva Decapod não apresentou o desempenho esperado. Além de ter sido pouco utilizada, foi baixada com apenas cerca de 21 anos de serviço. Os motivos para tal não são claros devido a escassez de informações, restando apenas o exercício acadêmico de se imaginar as possíveis causas para tal, baseando-se nas características técnicas da locomotiva e da via permanente donde pode-se especular que: 1- apesar dos esforços da Baldwin para garantir que ela seria capaz de se increver em curvas de raios menores, na prática isso não funcionou tão bem; 2 - Na prática, o esforço de tração não foi suficiente para tracionar a carga desejada; 3 - os custos operacionais e de manutenção não se justificaram em relação à efetividade do serviço dela; 4 - Apesar de não haver certeza em relação à pressão de trabalho, visto que a ficha de especificação da Baldwin não a apresenta e outras fontes divergem, conclui-se que, dependendo da mesma o fator de adesão da locomotiva poderia ser baixo, o que ocasionaria patinação excessiva quando em plena carga subindo as rampas de 1,8% da serra. Essa, provavelmente, pode ser a hipótese mais verossímil, visto que no próprio relatório da EFDPII consta a informação de que o seu fator de adesão era 0,2 menor do que o das locomotivas utilizadas nos Estados Unidos; a “grande locomotiva” no fim teria sido “vítima” das condições da via na década de 1880, que limitou o seu peso. Nessa época, a 2ª seção ainda era composta por trilhos de ferro; enquanto as novas seções recebiam trilhos de aço. Porém, a substituição por iguais de aço no trecho da serra provavelmente foi postergada devido ao fato do intenso movimento de trens e/ou por questões financeiras.

REFERÊNCIAS:

- History of The Baldwin Locomotive Works – 1831-1920;

- Baldwin Locomotive Works (Burnham, Parry, Williams & Co.) – March 1880 to May 1889 – Nos. 5000 to 9999;

- Baldwin Locomotive Works, Engine Specifications Vol. 12, 1884/1885;

- Relatórios da Estrada de Ferro D. Pedro II – entre os anos de 1885 e 1889;

- Relatórios da Estrada de Ferro Central do Brazil – entre os anos de 1889 e 1907;

- Memória Histórica da Estrada de Ferro Central do Brazil – Manuel Fernandes Figueira - Imprensa Nacional – Rio de Janeiro – 1908;

- Estudo Descriptivo das Estradas de Ferro do Brazil – Precedido da respectiva legislação – Cyro Diocleciano Ribeiro Pessôa Junior (funccionario publico) - Imprensa Nacional – Rio de Janeiro – 1886;

- Railways of the World, Frederick A. Talbot – Cassell & Co Ltd. – Londres – 01/01/1924;

- The Development of the “Decapod” - The Evolution of the Ten-Wheels-Coupled, the Heaviest and Most Powerful Single Engine for the Movement of Merchandise, retirado de Railways of the World by Frederick A. Talbot, published 1923;

- Cassier's Magazine - an engineering monthly, Volume XXXVIII, #5, October 1910;

- Gazeta da Tarde, edição 118 de 25 de maio de 1885;

- Diário de Notpicias de 15 de julho de 1886;

- Gazeta de Notícias, edição 329 de 25 de novembro de 1892;

- Jornal do Brasil, 14 de maio de 1899;

- Jornal do Commercio, edição 21 de 21 de janeiro de 1895;

- Jornal do Commercio, edição 97 de 6 de abril de 1892;

- Jornal do Commercio, edição 158 de 8 de junho de 1893;

- O Apostolo-Periodico religioso, moral e doutrinario, consagrado aos interesses da religião e da sociedade de 21 de julho de 1886;

- O Paiz, edição 141 de 23 de maio de 1885;

- O Paiz, edição 198 de 19 de julho de 1886;

- O Paiz, edição 1016 de 18 de julho de 1887;

- The Rio News, edição 34 de 5 de dezembro de 1885;

- The Rio News, edição 33 de 24 de novembro de 1886;

- Revista de Estradas de Ferro, edição 009 de 1885;

sábado, 24 de setembro de 2022

Mais um pouco de “bitolinha”: os 2 pés e ½, mais ou menos (ou o mito da exclusividade)

O velho mito difundido de que a linha original da antiga Estrada de Ferro Oeste de Minas seria a mais estreita do mundo e única de 76 cm (762 mm ou 2 pés e 6 polegadas) continua sendo repetido em posts e comentários de redes sociais.

Então, vamos retornar ao tema e verificar a incidência dessa medida como bitola de ferrovias para além de nossa querida e maltratada “bitolinha da EFOM”.

Histórico brasileiro de bitolas ferroviárias no século XIX

A primeira bitola adotada por uma via férrea construída em território brasileiro foi a de 1.676 mm, ou 5 pés e 6 polegadas. Essa era a largura encontrada na Estrada de Ferro de Petrópolis, popularmente chamada de “Ferrovia de Mauá” ou “Estrada de Ferro [de] Mauá”, construída e operada pela Imperial Companhia de Navegação a Vapor e Estrada de Ferro de Petrópolis. A maior probabilidade dessa escolha se deve ao contrato com o construtor J. E. Cliffe e/ou os dois engenheiros, William Bragge e R. Millagan. Os padrões construtivos da EFP eram similares aos de duas ferrovias britânicas construídas e operadas nas décadas anteriores: Dundee & Abroath Railway (1836-1847) e Arbroath & Forfar Railway (1838-1848). Os trilhos utilizados foram o do tipo Brunel, o mesmo tipo encontrado nas estradas britânicas; as locomotivas, apesar de serem de fábricas diferentes, seguiam as mesmas especificações de rodagem e dimensões.

As quatro ferrovias seguintes, frutos da Lei n. 641 de 1852, adotaram a mesma medida para suas linhas. Estrada de Ferro D. Pedro II, Estrada de Ferro Recife ao São Francisco, Estrada de Ferro Bahia ao São Francisco e Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, todas, optaram pela bitola de 1.600 mm (5 pés e 3 polegadas), chamada de “bitola irlandesa”. Durante o século XIX, apenas uma das ferrovias posteriores adotou a bitola larga para suas linhas, a Estrada de Ferro Paulista, da Companhia Paulista de Estradas de Ferro[1].

É verificável que, como dito, à exceção da CPEF, todas as ferrovias brasileiras do século XIX, construídas após as cinco pioneiras, adotaram bitolas estreitas para suas linhas, seguindo uma tendência global de estreitamento das vias combinado com a redução dos raios de curvas e incidência em trechos montanhosos. No caso brasileiro, com grande diálogo com a tendência norte-americana de ocupação do oeste/hinterland.

As bitolinhas

É possível considerar que a primeira ferrovia de bitola estreita do Brasil foi a Estrada de Ferro Cantagalo, de 1859, construída no norte fluminense. Porém, de forma sistemática e coincidente com a tendência geral de estreitamento, foi a Estrada de Ferro União Valenciana, construída no Vale do Paraíba do Sul na mesma província do Rio de Janeiro. Com as ferrovias seguintes é perceptível a predominância das bitolas estreitas no país. O engenheiro responsável foi Herculano Veloso e a razão para compreender a importância da adoção de bitola estreita como tendência geral está diretamente relacionada à redução de custos para a construção e a operação, como exposto por Manuel Fernandes Figueira em “Memória Histórica da Estrada de Ferro Central do Brazil”.

O nome do Dr. Herculano Penna está ligado ao da Estrada de Ferro União Valenciana. Esta estrada foi a primeira [sic] ferrovia de bitola estreita construída no Brasil entre a cidade de Valença, no Estado do Rio de Janeiro, e a estação do Desengano. [...] Pela Diretoria da Empresa foi nomeado gerente e engenheiro chefe o provecto Engenheiro Herculano Velloso Ferreira Penna que conseguiu realizar no Brasil uma das estradas de ferro mais econômicas, cujo preço quilométrico, a despeito do terreno acidentado sobre o qual teve ela de se desenvolver, encarecendo de muito o custo das diferentes unidades de obra, não excedeu de 30:000$000.[2]

Lista das ferrovias do Brasil e a bitola adotada por cada uma (1852-1884).

Estrada

Sistema até 1889

Início das obras

Bitola

E. F. Mauá

Britânico

1852

1.676 mm (5’ 6”)

E. F. Dom Pedro II

Britânico/Americano

1855

1.600 mm (5’ 3”)

E. F. Recife ao São Francisco

Britânico/Americano

1855

1.600 mm (5’ 3”)

E. F. da Baía ao São Francisco

Britânico/Americano

1856

1.600 mm (5’ 3”)

E. F. Cantagalo

Britânico/Americano

1859

1.100 mm (3’ 7 1/3”)

E. F. Recife a Caxangá

Britânico/Americano

1867

1.200 mm

E. F. Santos a Jundiaí

Britânico

1860

1.600 mm (5’ 3”)

E. F. União Valenciana

Americano

1869

1.100 mm (3’ 7 1/3”)

Companhia Paulista de E. F.

Britânico

1869

1.600 mm (5’ 3”)

E. F. Recife e Olinda

Britânico

1870

1.400 mm[3]

E. F. Porto Alegre-Nova Hamburgo

Britânico

1871

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Sorocabana

Americano

1872

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Leopoldina

Americano

1872

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Baturité

Americano

1872

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Paraná

Americano

1872

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Campos a São Sebastião

Americano

1872

960 mm (3’ 1 3/4”)

E. F. Ituana

Americano

1873

960 mm (3’ 1 3/4”)

Companhia Mogiana de E. F.

Americano

1873

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Central da Bahia

Americano

1874

1.067 mm (3’ 6”)

E. F. Niterói a Macaé

Americano

1874

1.100 mm (3’ 7 1/3”)

E. F. Macaé a Campos

Americano

1875

960 mm (3’ 1 3/4”)

E. F. Nazaré

Americano

1875

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. São Paulo-Rio de Janeiro

Americano

1875

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Campos a Carangola

Americano

1876

1.000 mm (3’ 3 3/8)

Prolongamento EFRSF

Francês

1876

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Barão de Araruama

Americano

1876

960 mm (3’ 1 3/4”)

E. F. Nazaré

Americano

1877

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Porto Alegre-Uruguaiana

Americano

1877

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Paulo Afonso

Americano

1878

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. de Sobral

Americano

1878

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Santo Amaro

Americano

1878

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Santa Isabel do Rio Preto

Americano

1878

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Bragantina

Anglo-Americano

1878

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Madeira-Mamoré (1ª tentativa)

Americano

1878

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Recife ao Limoeiro

Americano

1879

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Oeste de Minas

Americano

1879

760 mm (2’ 6”)

E. F. Santana

Americano

1879

1.000 mm (3’ 3 3/8”)

E. F. Paranaguá a Curitiba (do Paraná)

Americano

1880

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Dona Teresa Cristina

Britânico/Americano

1880

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Conde d’Eu

Americano

1880

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Natal a Nova Cruz

Americano

1880

1.000 mm (3’ 3 3/8”)

E. F. Príncipe do Grão-Pará

Americano

1881

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Bahia a Minas

Americano

1881

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Minas e Rio

Britânico/Americano

1881

1.000 mm (3’ 3 3/8)

E. F. Central de Pernambuco

Americano

1881

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Rio das Flores

Americano

1881

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Rio Grande do Sul

Belgo-Americano

1881

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Central da Baía

Americano

1882

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Bananal

Americano

1882

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. São Fidélis a Campos

Americano

1882

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Juiz de Fora-Piau

Americano

1882

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Rio Claro

Americano

1882

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Quaraí a Itaqui

Belgo-Anglo-Americano

1883

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. de Bragança

Americano

1883

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Vassourense

Americano

1884

600 mm (1’ 11 58)

E. F. Rio d’Ouro (do Norte)

Americano

1884

1.000 mm (3’ 3 38)

E. F. Rio-Porto das Caixas

ND

1884

1.000 mm (3’ 3 38)

Fontes: BAPTISTA, José Luiz. “O surto ferroviário e seu desenvolvimento”. Separata de: Anais do Terceiro congresso de História Nacional (VI Volume), publicação do Instituto Histórico. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942Relatórios de várias companhias entre 1869 e 1881; Relatórios do Ministério do Império (1852-1858); Relatórios do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras públicas (1860-1884).

Na Revista de Estradas de Ferro (1885-1889), um artigo de Stephen Dillaye argumenta as vantagens da bitola estreita em relação à larga. Em seu caso, ele compara a bitola de 3 pés (914 mm) da Denver & Rio Grande Railroad com a de 4 pés, 8 polegadas e ½ (1.435 mm) da Pensylvannia Railroad. O argumento principal de Dillaye em seu “O problema dos transportes baratos” baseia-se em valores que relacionam largura da via, peso morto (tara) versus peso útil (carga) dos tipos de vagões, mais o preço pago por cada tipo em cada bitola.

Seus argumentos sobre bitola ferroviária, capacidade de transporte de cada uma e a defesa pela adoção da largura mais estreita das vias férreas se vinculavam à defesa da redução geral de custos para as indústrias agrícola, manufatureira e extrativista. Dos valores por ele apresentados, pode-se gerar a seguinte tabela:

Comparação entre veículos de bitola estreita e larga por Stephen D. Dillaye, década de 1880.

Veiculo

Bitola 3 pés (914 mm) - DRGRR

Bitola 4 pés 8 ½ polegadas (1.435 mm) - PRR

Tara lbs

Carga lbs

Preço US$

Tara lbs

Carga lbs

Preço US$

Vagão fechado

8.800

17.600

458

19.000

19.000

735

Vagão plataforma

6.200

19.000

350

18.000

18.000

575

Gôndola

7.250

18.000

385

18.500

18.500

625

DILLAYE, Stephen D. “O problema dos transportes baratos”. Revista de Estradas de Ferro, Rio de Janeiro, Ano III, n. 25, 31 jan. 1887, p. 8.

Em uma média de bitolas próximas à métrica, destoava o aparecimento da bitola de 762 mm (2 pés e 6 polegadas) e 600 mm (1 pé, 11 polegadas e 58) das Estrada de Ferro Oeste de Minas e da Estrada de Ferro Vassourense, respectivamente. Mas, estamos aqui para falar da bitola de 762 mm ou, arredondada e popularmente, 76 cm.

De 750 a 762 mm, na prática uma coisa só

Para começar, já caiu, acima, o mito da bitola “mais estreita” ao depararmo-nos com a de 600 mm (1 pé, 11 polegadas e 58), que combina com a de 610 mm (2 pés). Agora, vamos ver que “a única do mundo” é uma bobagem cavalar, com trocadilho.

São registradas pelo menos três medidas específicas para essa que, na prática, é a mesma bitola, sendo os veículos intercambiáveis sem alterações:

·         750 mm ou 2 pés 5 polegadas e ½

·         760 mm ou 2 pés 5 polegadas e 15/16 (bitola bósnia)

·         762 mm ou 2 pés e 6 polegadas

Corte de via férrea comparativa das três medidas

Desenho: Welber Santos

Essas são medidas muito comuns em uma escala global. São encontradas em todos os continentes e são, acreditem, mais comuns do que a bitola mais comum utilizada no Brasil, a bitola métrica.

Ferrovias em Bitola de 750 mm ou 2 pés, 5 polegadas e 1/2

Ferrovias conhecidas em bitola de 750 mm, históricas ou ativas

Argélia

Société Anonyme des Mines du Zaccar

Argentina

Ferrocarril Central del Chubut

Ferrocarril General Manuel Belgrano

Ferrocarriles Patagónicos (La Trochita)

Ramal Ferro Industrial Río Turbio

Áustria

Internationale Rheinregulierungsbahn

Armênia

Estrada de Ferro Pioneira de Yerevan (Երևանի մանկական երկաթուղի)

Azerbaijão

Estrada de Ferro Pioneira de Baku (Azərbaycan Dövlət Uşaq Dəmir Yolu)

Bielorrússia

Estrada de Ferro Pioneira de K. S. Zaslonov (Dzitsyachaya chyhunka)

Bolívia

Ferrocarriles Vinto-Cochabamba

Chile

Ferrocarril Yungay–Barrancas

Rep. Tcheca

Frýdlant–Heřmanice Bezirksbahn

Egito

Egyptian Delta Light Railways, Fayoum Light Railway

Equador

FC El Oro

FC de Bahia a Chone

Estônia

11 ferrovias construídas sobre esta bitola

Finlândia

Jokioisten Rautatie

França

Chemin de Fer Economiques Forestiers des Landes

Georgia

Ferrovias Pioneiras de Tbilisi

Grécia

Sidiródromos Diakopto–Kalavryta

Alemanha

Döllnitzbahn GmbH

Lößnitzgrundbahn

Weißeritztalbahn

Zittauer Schmalspurbahn

Indonésia

Várias ferrovias de engenho e uma para construir a Atjeh Tram (rede em 1.435 mm)

Cazaquistão

7 ferrovias construídas sobre esta bitola

Letônia

10 ferrovias construídas sobre esta bitola

Lituânia

Švenčionėliai Geležinkelis Stotis

Marrocos

Algumas ferrovias industriais e mineiras.

Holanda

Vários sistemas de tramways

Noruega

Nesttun–Os Line

Sulitjelma Line

Urskog–Høland Line

Polônia

18 ferrovias construídas sobre esta bitola

Porto Rico

Tranvía de la Capital a Río Piedras

Rússia

35 ferrovias construídas sobre esta bitola

Espanha

Ferrocarriles de Flassa a Palamos, Gerona y Banolas

Ferrocarriles de Onda al Grao de Castellon y Villareal-Puerto de Burriana

Ferrocarriles de San Feliu de Guixois a Gerona

Ferrocarriles Granada a Sierra Nevada

Ferrocarriles Valdepenas a Puertollano

Suiça

Internationale Rheinregulierungsbahn

Drahtseilbahn Marzili–Stadt Bern (Marzilibahn)

Waldenburgerbahn

Turquia

Samsun-Çarşamba Demiyol Hattı

Ucrânia

Várias ferrovias comuns, industriais, agrícolas e florestais

Uzbequistão

Uma ferrovia no Parque Nacional do país

Fonte: WIKIPEDIA. 750 mm gauge railways. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/750_mm_gauge_railways>. Acessado em: 03/01/2022.

É perceptível que não há diferenciação definitiva entre as bitolas de 750, 760 e 762 mm. O ponto que deve ser considerado é o fato de que as medidas 750 e 760 mm são definidas pelo sistema métrico, enquanto a medida de 762 mm é uma conversão do padrão imperial para 2 pés e 6 polegadas. Ao considerarmos a folga típica das rodas nos eixos para o encaixe, sobretudo o natural desgaste do friso, mais a prática construtiva e de manutenção da via permanente, não há diferença real entre essas três bitolas.

Locomotiva classe PKP Px48-1756. Sroda Wielkopolska, Polônia. Fonte: Railpictures. Disponível em: <https://www.railpictures.net/photo/300835>. Acesso em: 04/01/2022.

Ferrovias em Bitola Bósnia, 760 mm ou 2 pés, 5 polegadas e 15/16

A medida fechada em 760 mm, ou 2 pés, 5 polegadas e 15/16, é só mais uma variação da bitola de 2 pés e ½. No entanto, para todos os efeitos, é classificada precisamente como mais uma.

De qualquer modo, é surpreendente como é mais comum do que imaginávamos. Vejamos as localidades onde essa medida foi adotada oficialmente.

Ferrovias conhecidas em bitola de 760 mm, históricas ou ativas

Argentina

Ferrocarril Península Valdés

Áustria

15 ferrovias construídas sobre esta bitola

Bosnia and Herzegovina

Estrada de Ferro Pioneira de Yerevan (Երևանի մանկական երկաթուղի)

Bulgaria

Várias ferrovias

Croácia

Parenzana

Samoborček

Rep. Tcheca

Jindřichohradecké Místní Dráhy

Třemešná ve Slezsku  Osoblaha

Rep. Dem. do Congo

Matadi–Kinshasa Railway

Rep. Dominicana

Ferrocarriles Centrales Dominicanos

Hungria

A maior parte da malha de bitola estreita (23 ainda ativas)

Itália

Fleims Valley Railway (na verdade Império Áustro-Hungaro)

Lokalbahn Mori–Arco–Riva (idem)

Parenzana (Itália-Eslovênia-Croácia)

Val Gardena ou Grödnertalbahn

Romênia

11 ferrovias construídas sobre esta bitola

Sérvia

Šargan Eight

 

 

Eslováquia

Čiernohronská Železnica

Historical Logging Switchback Railway

Trenčianskoteplická Elektrická Železnica

Oravsko-Kysucká Lesná Železnica

Považská Lesná Železnica

Eslovênia

Parenzana (contada também em Itália)

PoljčaneSlovenske KonjiceZreče

Uruguai

Ferrocarril Pan de Azucar - Piriapolis

Fonte: WIKIPEDIA. 750 mm gauge railways. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Bosnian-gauge_railways>. Acessado em: 03/01/2022.

Como temos visto, a variedade geográfica de aplicação da medida de 760 mm é grande e, também, global.



Ferrovia em bitola de 760 mm na Bulgária com trem de excursão puxado pela locomotiva 209 76, uma 2-10-2T entre Septemvri e Bansko. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/trainplanepro/2148914122>. Acessado em: 04/01/2022.

Ferrovias em bitola de 762 mm, ou 2 pés e ½

Aqui, encontramos o que pode ser a origem dessa medida em ferrovias, considerando o padrão de medidas imperial como o originário para essa atividade. Na prática, 750 ou 760 mm são apenas variações da bitola de 2 pés e ½.

Ferrovias conhecidas em bitola de 762 mm, históricas ou ativas

Afeganistão

Kabul–Darulaman Tramway

África do Sul

Namaqualand Railway

Sheba Tramway

Antigua e Barbuda

Rede de 80 km para atender plantation e engenhos de açúcar

Austrália

Crowes Railway Line

Gembrook Railway Line (Puffing Billy Railway)

Tyers Valley Tramway

Walhalla Goldfields Railway

Walhalla Railway Line

Welshpool Jetty Railway Line

Whitfield Railway Line

Barbados

Barbados Railway (convertido de 3 pés e ½ ou 1.067 mm [bitola do Cabo])

Brasil

Estrada de Ferro Oeste de Minas

Ferrovia de canavial na Zona da Mata Mineira (a confirmar)

Estrada de Ferro Maricá

Chile

Ferrocarriles Caleta Coloso a Aguas Blancas

Ferrocarriles de Junin

Ferrocarriles de Antofagasta a Bolivia (convertida para 1.000 mm)

China

19 ferrovias construídas sobre esta bitola em 8 províncias

Coréia do Sul

Suin

Curaçau

Bonde puxado por cavalos em Willemstad

Chipre

Cyprus Government Railway

EUA

23 ferrovias construídas sobre esta bitola divididas entre 9 estados

Haiti

Compagnie des Chemins de Fer de la Plaine du Cul-de-Sac

Índia

Kalka–Shimla Railway

Kangra Valley Railway

Iraque

Ferrovias militares do Império Britânico construídas a partir de 1916.

Japão

Das 26 ferrovias construídas sobre esta bitola, 17 foram convertidas para 1.067 mm

Coréia do Norte

8 ferrovias construídas sobre esta bitola (todas ainda ativas)

México

Ferrocarriles de Zacatlán

Moçambique

Caminhos de Ferro de Gaza

Myanmar

Arakan Light Railway

Madaya Light Railway

Nigéria

Bauchi Light Railway

Paquistão

Bannu–Tank Branch Line

Daud Khel–Lakki Marwat Branch Line

Larkana–Jacobabad Light Railway

Zhob Valley Railway

Reino Unido

23 ferrovias construídas sobre esta bitola divididas entre Inglaterra, Escócia e Gales

São Cristóvão e Neves

St. Kitts Scenic Railway

Serra Leoa

Sierra Leone Government Railway (toda a rede do país foi construída sobre esta bitola)

Taiwan

Alishan Forest Railway

Hualien–Taitung Line

Taiwan Sugar Railways

Fonte: WIKIPEDIA. 750 mm gauge railways. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/2_ft_6_in_gauge_railways>. Acessado em: 04/01/2022.

Como podemos perceber, essa bitola não apenas não é exclusividade da velha Oeste de Minas como é uma das mais difundidas pelo mundo, existindo em todos os continentes, variando de pequenas ferrovias industriais ou rurais até redes de grande porte ligando vastas regiões ou mais de um país.

Ferrovia em bitola de 760 mm ao norte da Índia, Kalka Shimla Railway, puxado pela locomotiva KSR K 2-6-2T. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/124446949@N06/48996174041>. Acessado em: 04/01/2022.

Mitos são importantes para compreender a formação cultural das sociedades, mas não servem para compreender as coisas como fatos e realidade. Hoje, temos ferramentas à mão – literalmente, inclusive – para buscar as informações que podem auxiliar a substituir mitos e devaneios por conhecimento.



[1] A Companhia Paulista, para sua identidade pública, nunca adotou o nome E. F. Paulista, preferindo manter o nome da companhia em evidência, ao contrário das outras. O mesmo pode ser dito da Companhia Mogiana.

[2] FIGUEIRA, Manuel Fernandes. Memória Histórica da Estrada de Ferro Central do Brazil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908, p. 218.

[3] É possível que esse valor tenha sido arredondado de 1.435 mm para 1.400.